quarta-feira, 8 de junho de 2011

Terreiro de anjos caídos.

Acordara obrigado pela escassez de suas papilas gustativas. Levantava-se da esteira de palha fulva enquanto clamava crenças ao "todo poderoso". Clamava de um jeito que poderia se assemelhar com cantigas de um terreiro de samba, e em como uma dança, caminhava em ritmo de sua jornada.
Em pés avelhentados pelo barro ressecado, retirava-se do celeiro abandonado que invadira na noite passada.
No rosto marcado, o sorriso e o suor; em sua boca, uma gaita e a sede. E em suas mãos, uma peixeira e um terço.
Durante o caminho, Xico perguntava em voz alta aonde estaria a vila mais próxima, mas não havia ninguém a responder; no embalo de suas alucinações, a prosa se guiava pelos desejos de moleque.
- Ocê acha que lá vai ter uma moça bonita pr'eu? - dizia o homem olhando para o horizonte.
- Espero que sim, espero que ela me dê um cadinho de fio pa nós criar... Ai, os cabra vão ter de trabalhar que nem o pai! E a única menina vai sempre carregar uma bacia de água na cabeça. - respirou fundo e lambeu os lábios.
- Como é que eu sei que só vai ter uma moça de fia?! Mas em todas as boa família só se tem uma moça de fia... Já passei muito apurrinho nesse inferno, cabra!
Passaram-se horas. Xico estava mudo, sério, e quase rastejava-se pelos cactos. Agora, todo ou qualquer som que vira de suas entranhas eram urros; urros que assemelhavam-se com os de um terreiro de guerra.
A cor áurea do pôr-do-sol refletia em seus olhos quase fechados. Da mesma forma que seu suplico por água.
- Deus! - berrava enquanto chorava, agachado sobre a terra.
- De que adianta me deixar aqui, pai?! - entortava o terço.
- De que adianta falar sozinho? - derramava suas últimas lágrimas enquanto abaixava sua cabeça e se recostava em um umbuzeiro enviesado.
- Eu desisto. - fechava os olhos, mesmo ao ver uma dúzia de abutres sobrevoando-o; cobiçando sua carne; corrompendo o solitário e permanente anjo caído.
Acordava obrigado pela escassez de suas papilas gustativas. Levantava-se do barro fulvo enquanto ordinariamente clamava crenças ao "todo poderoso".

domingo, 22 de maio de 2011

Papel, caneta e um Bom Dia.

O esfregão se movia para lá e para cá; para lá e para cá. Aquele cheiro de desinfetante que ele já conhecia tão bem invadia suas narinas. Ele odiava aquele cheiro que ordinariamente o separava de seus sonhos.
Machado de Assis, Guimarães Rosa, Fernando Sabino; todos estampados na vitrine impecavelmente limpa.
Danilo sempre fora muito perfeccionista. No colégio principalmente, assim como no seu oficio; desde os tempos de moleque se encantava com as entrelinhas de qualquer livro; da mesma forma que os que liam seus rabiscos.
Era frustrante ver seus sonhos afundados em um balde de detergente. Afundados que nem o dinheiro que sua falecida mãe lhe deixou; aos 16 anos, Danilo não era mais estudante, ao invés de um lápis, agora segurava um esfregão.
- Homem não chora. - dizia seu pai repetidamente quando a fome apertava.
Infelizmente, essa fora uma das poucas lições que não desmistificou.
Limpava o chão com suas lágrimas, mas ninguém notava. Afinal, ninguém notava nada que ele fazia; Ninguém o notava.
Após o trabalho, cabisbaixo como em todos os dias, vagava pelas calçadas em direção ao ponto de Ônibus. Como um filho à procura de sua mãe, um pedaço de papel encardido se agarrou à sua perna; porventura do destino ou por simples coincidência, ele não sabia. Mas no papel estava escrito "Procura-se escritor amador".
Ao amanhecer do dia seguinte, não compareceu à seu fardo, e não pretendia comparecer mais.
Como se tivesse 16 anos novamente, saltitava a caminho da realização de seus sonhos; ao entrar no escritório, não era mais um esfregão. Agora, era um papel, uma caneta e um "bom dia".
- Bom dia. - disse a secretária com um sorriso no rosto.

Escrito por: Alanna Chemas e Ana Luiza Saback.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

O Barranco


Ela afundava seus pés na lama. Não por acidente, mas por pura diversão. Diversão que sua mãe logo proibia.
- Um dia você vai furar seu pé, menina! - dizia dona Liete enquanto se arrumava para o trabalho. Mesmo com as reclamações, Ana iria esperar sua responsável se ausentar para voltar a sentir aquele macio paraíso que era a lama.
A diversão da menina sempre fora feita de poucos luxos. Nunca tivera brinquedos, só uma boneca velha e caolha, que a filha da patroa de sua mãe lhe doara.
Seu irmão costumava dizer que sua mãe não percebia que ela brincara na lama porque não havia diferença entre a cor das duas. Ozeas fazia comentários desse tipo para atordoar o juízo da irmã mais nova, pois ele sabia que a mãe não notava de exaustão do trabalho.
Atordoava o juízo até a pequena chorar, e quando chorava, a chamava de “escurinha” em um tom carente. “Escurinha” era como dona Liete se referia à filha, em uma voz macia, tão macia quanto a lama que costumava pisar. Infelizmente, ninguém tivera mais tempo para a “escurinha”, que ficava em casa sozinha das seis da manhã ás nove da noite.
Quando o medo apertava, chegara a fazer esculturas com o barro no quintal de casa.
Esculturas em formatos da mãe, do irmão, do pai que nunca conheceu, e de algumas comidas que via em sua TV de imagens preto e branco; Ana moldava tudo que não tinha.
Certo dia, escutou alguns passos rápidos vindo até sua casa. Um sorriso incomum estava estampado em seu rosto; mal sabia que eram três policiais à procura de Ozeas. Pior, dessa vez, vasculharam a casa toda, até destruíram alguns montes de lama que Ana havia preparado. Ah, nesse momento teria de haver algum espeto debaixo do monte de terra, mas não havia.
Nesse mesmo dia, uma chuva incomum tomava conta de Salvador. Seis da tarde. Só três horas para sua mãe retornar.
- Ainda bem. - falava com a escultura de um cachorro que sempre quis ter.
A criança tinha mais medo de chuva do que de policiais; mais medo de chuva do que de espelhos; mais medo de chuva do que de fogo, mas seu medo não era tão forte quanto o seu amor ao barro.
A lama se desfazia a cada gota que esse Deus mandava. Esse Deus que tirou-lhe tudo.
Bravamente, a menina abriu a porta do barranco, e fora segurando alguns pedaços secos que estavam sendo puxados para baixo do morro. Chegou até na ponta, chegou a ver a cidade toda. Tudo que importava era sua mãe de barro, e seu pai de lama.
Repentinamente, um pedaço de terra desmorona. Onde estaria Ana?
Nove da noite; dona Liete chegou. Atordoada, encharcada, e pela primeira vez notou, sem reclamações, que o barro estava afundando na maciez de Ana; por acidente.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Imaginei.


Me imaginei naquela árvore. Aquelas folhas cor verde escuro me chamavam. Seus galhos firmes gritavam por meu nome animal.
Lá eu era um lemore. Minhas mãos eram meus pés assim como o inverso. Minha calda era tão forte quanto qualquer corda de marinheiro.
Meus olhos assustados pela multidão me obrigavam a observar jovens, suas drogas, seus costumes. Tão estranho, agressivos e barulhentos. Por que tudo isso mesmo?
Eu era apenas um primata em meu dia de caça e boémia. A noite, festejava com outros de minha espécie. Ao som de tambores e barulhos de galhos eu me sentia como aqueles jovens de mais cedo.
Paro e reflito.
Me imaginei naquele banco. Eu era aquela garota de camisa cor creme com detalhes de flores azuis. Segurava um pequeno galho branco, com um pedaço cor rosa na ponta, e exalando uma fumaça muito forte, o levava até a boca, e o tirava, repetidas vezes fiz isso. Eu era barulhenta. Festejava, mostrava os dentes. Olhava para o céu, imaginava ter asas, e como é ser um pássaro. Não me sentia como um, nem em espírito, nem em corpo.
Afinal, minhas semelhanças com a menina é que nós dois temos polegares.