segunda-feira, 2 de maio de 2011

O Barranco


Ela afundava seus pés na lama. Não por acidente, mas por pura diversão. Diversão que sua mãe logo proibia.
- Um dia você vai furar seu pé, menina! - dizia dona Liete enquanto se arrumava para o trabalho. Mesmo com as reclamações, Ana iria esperar sua responsável se ausentar para voltar a sentir aquele macio paraíso que era a lama.
A diversão da menina sempre fora feita de poucos luxos. Nunca tivera brinquedos, só uma boneca velha e caolha, que a filha da patroa de sua mãe lhe doara.
Seu irmão costumava dizer que sua mãe não percebia que ela brincara na lama porque não havia diferença entre a cor das duas. Ozeas fazia comentários desse tipo para atordoar o juízo da irmã mais nova, pois ele sabia que a mãe não notava de exaustão do trabalho.
Atordoava o juízo até a pequena chorar, e quando chorava, a chamava de “escurinha” em um tom carente. “Escurinha” era como dona Liete se referia à filha, em uma voz macia, tão macia quanto a lama que costumava pisar. Infelizmente, ninguém tivera mais tempo para a “escurinha”, que ficava em casa sozinha das seis da manhã ás nove da noite.
Quando o medo apertava, chegara a fazer esculturas com o barro no quintal de casa.
Esculturas em formatos da mãe, do irmão, do pai que nunca conheceu, e de algumas comidas que via em sua TV de imagens preto e branco; Ana moldava tudo que não tinha.
Certo dia, escutou alguns passos rápidos vindo até sua casa. Um sorriso incomum estava estampado em seu rosto; mal sabia que eram três policiais à procura de Ozeas. Pior, dessa vez, vasculharam a casa toda, até destruíram alguns montes de lama que Ana havia preparado. Ah, nesse momento teria de haver algum espeto debaixo do monte de terra, mas não havia.
Nesse mesmo dia, uma chuva incomum tomava conta de Salvador. Seis da tarde. Só três horas para sua mãe retornar.
- Ainda bem. - falava com a escultura de um cachorro que sempre quis ter.
A criança tinha mais medo de chuva do que de policiais; mais medo de chuva do que de espelhos; mais medo de chuva do que de fogo, mas seu medo não era tão forte quanto o seu amor ao barro.
A lama se desfazia a cada gota que esse Deus mandava. Esse Deus que tirou-lhe tudo.
Bravamente, a menina abriu a porta do barranco, e fora segurando alguns pedaços secos que estavam sendo puxados para baixo do morro. Chegou até na ponta, chegou a ver a cidade toda. Tudo que importava era sua mãe de barro, e seu pai de lama.
Repentinamente, um pedaço de terra desmorona. Onde estaria Ana?
Nove da noite; dona Liete chegou. Atordoada, encharcada, e pela primeira vez notou, sem reclamações, que o barro estava afundando na maciez de Ana; por acidente.

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